Quarta-feira, 2005-10-05 23:10:33
Durante a manhã houve pouco movimento no hospital. O Dr. Américo (o médico local) também estava presente, de modo que o pouco trabalho foi a dividir por três. A chuva torrencial teve provavelmente um papel fundamental ao afastar os doentes com situações crónicas, fazendo com que só os que sofriam de uma doença aguda viessem. Com a época das chuvas, aumentam os casos de infecções respiratórias que, sem qualquer meio complementar de diagnóstico à disposição, muitas vezes se confundem com malária ou parasitoses intestinais (que na fase de migração pulmonar dos parasitas provocam tosse). Depois de terminadas as consultas fizemos uma entrega de medicamentos ao hospital. A AMI tem uma farmácia própria em Angolares que abastece de forma gratuita o hospital. Habitualmente recebemos pedidos de cedência de medicamentos uma a duas vezes por mês.
Após o almoço (uma bela posta de peixe fumo frita pelo Dr. Stepan Harbuz), aproveitei para estudar enquanto não vinha a electricidade. Mas o meu estudo foi interrompido por volta das 16 horas, quando o enfermeiro de serviço no hospital nos ligou: havia uma criança em situação urgente que queria que víssemos. Era um menino de 2 anos que tinha sido enviado para o hospital de Angolares pelo enfermeiro de Porto Alegre (ainda bem que hoje já se conseguia passar em Monte Mário). Na segunda-feira tinha sido visto por mim na consulta com febre e dores no corpo e de cabeça. Na altura achei que poderia ter malária ou então uma infecção viral. Como as infecções virais normalmente são auto-limitadas (ou seja, curam-se sozinhas) e só voltamos a fazer consulta na quinta-feira, normalmente não arriscamos e tratamos como se fosse malária. No espaço de algumas horas a malária pode tornar-se bastante grave e ter complicações importantes como a malária cerebral. Contudo não podemos aplicar aqui uma importante ferramenta diagnóstica que existe nos países desenvolvidos: a esperoterapia. Pode parecer um contra-senso, mas muitas vezes é preciso deixar o processo natural avançar um pouco para que se consiga fazer o diagnóstico. É possível fazer isto com segurança num país desenvolvido, onde o acesso aos cuidados de saúde é fácil e rápido caso a situação se agrave. Assim, geralmente optamos por tratar a doença que poderá ser mais grave, ou então, todas as doenças que estamos a considerar como possíveis ao mesmo tempo. No espaço de dois dias o quadro clínico desta criança evoluiu, passando a incluir tosse e dificuldade respiratória e também alterações na auscultação pulmonar. Mudou também o diagnóstico, que passou a ser de provável pneumonia (não temos radiografia para o confirmar). O menino vinha com uma dificuldade respiratória marcada, o que nos deixou algo preocupados, especialmente face aos reduzidos meios de que dispomos. Não temos maneira de avaliar com exactidão a repercussão da dificuldade respiratória no estado de oxigenação do sangue, uma vez que não existe um oxímetro (medidor de oxigénio) nem a possibilidade de fazer uma gasimetria (análise que mede os gases do sangue, entre eles o oxigénio). Pior que isso, não temos à nossa disposição o que seria a primeira medida de tratamento: oxigénio. Também não existem aerossóis ou bombas inalatórias à disposição. Restou-nos fazer a terapêutica com antibióticos e broncodilatadores (medicamentos que dilatam os brônquios e, desta forma, facilitam a respiração) pelas vias endovenosa e oral.
Enquanto escrevia o parágrafo anterior (às nove e meia da noite), o enfermeiro de serviço no hospital telefonou-nos novamente. Apesar da medicação, o nosso menino continuava a ter dificuldade em respirar. Voltámos ao hospital e fizemos mais alguns medicamentos que surtiram algum efeito. A criança passou a respirar com menos dificuldade e conseguiu adormecer. Estamos a ponderar a evacuação do menino para o hospital central na capital, mas, depois de discutido o caso por telefone com o colega dos Médicos do Mundo (que é interno da especialidade de pediatria e está na capital), decidimos aguardar mais algum tempo para avaliar o impacto da medicação. É que a única vantagem do hospital central é a existência de oxigénio, não tem muito mais meios que possam ajudar. Se for necessária a evacuação há ainda a considerar que a ambulância do hospital está sem pneu suplente, pois teve um furo hoje (e se furarmos a caminho da capital sem pneu suplente ficamos na estrada até ser dia, já que a esta hora não há outros carros a circular entre Angolares e a cidade de S. Tomé e não há rede de telemóvel na maior parte do trajecto) e tem apenas combustível para a viagem de ida.
Como tenho de manter o telefone livre, não vou colocar hoje as fotografias que tinha preparado para as galerias do site, espero fazê-lo (e contar o desfecho desta situação) amanhã.
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