Sexta-feira, 2005-09-09 00:09:39

Esta entrada corresponde ao dia de Sábado (3 de Setembro)
Os sábados deveriam ser dias calmos. A ideia é passar uma visita ao hospital durante a manhã e partir para a capital ao início da tarde, para que tenhamos tempo de nos abastecermos para a semana seguinte. No entanto, este sábado foi tudo menos calmo.
Depois de passarmos visita no hospital estranhámos o facto de o doente da úlcera na perna que tínhamos enviado ontem (a quem vamos chamar senhor V.) não estar presente. O enfermeiro de serviço informou-nos que o doente tinha vindo de manhã cedo, à procura de uma ambulância para trazer a mulher de Dona Augusta para Angolares, já que esta estava bastante doente. Contudo, a ambulância tinha partido para a capital, de maneira que o senhor V. tinha voltado para casa, para cuidar da esposa. Tínhamos agora duas situações a preocuparem-nos: o facto o senhor V. não estar a fazer o tratamento que havíamos prescrito e uma nova doente a sua mulher num estado que presumimos ser algo grave.
A atitude a tomar era óbvia: tínhamos de ir até D. Augusta trazê-los aos dois para Angolares. Partimos imediatamente e, quando chegámos, os nossos receios confirmaram-se. Mandámos chamar o senhor V., que nos informou acerca da condição da sua esposa. Já que a senhora V. conseguia andar, pedimos que a trouxessem até ao edifício do posto comunitário de saúde. Não que no posto comunitário existisse qualquer equipamento médico que nos pudesse auxiliar, apenas possui uma mesa, cadeiras e bancos (nem sequer tem electricidade ou água canalizada), mas pelo menos tem paredes de tijolo e cimento e o chão de tijoleira está razoavelmente limpo.
A senhora V. tinha começado a queixar-se de dores de cabeça e tonturas desde a noite anterior. O marido também notava que o seu comportamento não era o normal. Observámos rapidamente a senhora V. e verificámos que existia uma diminuição do estado de consciência (obnubilação), um tremor anormal dos olhos (nistagmo) e uma protusão marcada do olho esquerdo (exoftalmia). Os reflexos pupilares eram normais, não existiam alterações na capacidade de se mexer nem de sentir e não apresentava sinais de meningite. Suspeitámos de que a senhora V. sofresse de um aumento da pressão intracraniana, mas desconhecíamos a sua causa. Considerando tratar-se de uma mulher nova (34 anos), saudável ao que sabíamos e pelo facto de estarmos numa zona onde a malária é endémica, talvez a senhora V. sofresse de uma das complicações da malária a malária cerebral.
Percebemos também que não tínhamos condições para a tratar em Angolares e que teríamos de a enviar para o hospital da capital, o que representava uma situação familiar complicada. O senhor V. deveria ser internado em Angolares, a senhora V. na cidade de S. Tomé e a filha do casal com um ano e ainda a mamar (situação muito frequente nestas bandas) ficaria sem ninguém. Era óbvio que a filha teria de acompanhar a mãe para poder continuar a mamar, mas quem cuidaria dela estando a mãe incapaz de o fazer? O pai também teria de ir para a capital, mas sabíamos que a probabilidade de aceitarem também o seu internamento no hospital central era baixa.
Evacuámos então o casal V. e a filha para Angolares no jipe da AMI. Um veículo normal que usamos nas nossas deslocações e não está preparado para o transporte de doentes. Em Angolares, enquanto eu preparava as notas de transferência, os outros dois médicos da AMI iniciavam algumas medidas básicas de tratamento da senhora V. com os meios que tínhamos à disposição. Antes de partirem demos ao senhor V. algumas papas para poder dar à filha e, percebendo a sua atrapalhação perante uma estadia prolongada na capital sem meios de subsistência, oferecemos-lhe 100 000 dobras do nosso bolso.
A ambulância (entretanto regressada da capital) lá partiu com os nossos doentes e nós já estávamos atrasadíssimos. Eram duas da tarde, ainda havia que almoçar e às três tínhamos combinado uma visita às instalações médicas da estação retransmissora da rádio Voice of America (a uma hora de viagem).
Depois de muita correria, lá chegámos à base americana. A Voice of America é uma rádio pertencente ao Departamento de Estado e que visa difundir a visão norte-americana da realidade ao resto do mundo, especialmente aos países pobres. No fundo, é um instrumento de propaganda. A partir da estação retransmissora de S. Tomé, a Voice of America chega a todo o continente africano (na foto, as suas antenas iluminadas à noite). Vivem na base três famílias norte-americanas e também existem vários funcionários locais. A base é uma ilha dentro da ilha, com fornecimento de energia, água e combustível e, claro está, instalações médicas e médico próprios. Estas últimas, como tudo o resto, estão ao nível dos padrões ocidentais. Existem até kits de emergência e reanimação, inclusivamente vários desfibrilhadores (aparelho essencial para tratar uma paragem cardíaca e que, ao que sabemos, não existe em mais nenhuma parte do arquipélago). Ainda tivemos direito a uma visita guiada pela estação retransmissora, com explicações detalhadas acerca do seu funcionamento. Quando saímos bastou olhar em redor para nos relembrarmos que não estávamos num país ocidental, como a base norte-americana poderia fazer crer, mas em S. Tomé, onde a pobreza se nota a cada esquina.
Na cidade já era tarde para fazer as compras de que necessitávamos, as lojas tinham encerrado, de maneira que fomos à procura de alojamento e de jantar. A simpatiquíssima Nora deixou-nos ficar em sua casa gratuitamente, onde também está um outro médico português, responsável pela missão dos Médicos do Mundo e com quem eu já tinha trabalhado entre Fevereiro e Março no hospital de Santa Maria. Convidámo-lo para jantar, mas antes ainda fomos ao hospital central ver como estavam os doentes que tínhamos evacuado de manhã. A senhora V. encontrava-se a fazer medicação endovenosa para a malária, mas o marido, como receávamos, não tinha ficado internado. Partimos descansados. Ao jantar escolhemos um belo prato de carne como vingança de todas as latas de atum que tínhamos comido durante a semana. Para sobremesa, um belo gelado de chocolate. |
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