Missão S. Tomé e Príncipe - Diário de Viagem, por Daniel Pinto
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Sexta-feira, 2005-09-02 23:09:42

À 6ª-feira visitamos apenas dois postos comunitários: Iô Grande e Dona Augusta. Iô em angolar (a língua local) significa rio. A parte médica foi mais uma vez muito interessante, com alguns casos que merecem ser contados. O primeiro foi o de um homem ainda novo que veio por uma úlcera (ferida) infectada na perna. Depois de um traumatismo e devido às fracas condições de higiene a ferida infectou. O doente já tinha vindo à consulta na semana passada, tendo sido medicado com um antibiótico e prescritos pensos e limpeza diária da ferida. No entanto, estas medidas são mais fáceis de dizer que pôr em prática. Com o trabalho diário o penso ficava constantemente sujo, agravando a infecção. Mas como dizer a alguém que vive do muito pouco que o seu trabalho lhe dá que vai ter de parar durante uns dias e viver ainda com menos no final do mês? Hoje o aspecto da ferida deixou-nos um pouco alarmados, a situação tinha-se agravado. Optámos por enviar o doente para o hospital de S. João dos Angolares (o que quer dizer que lhe pedimos que se desloque até lá pelos seus próprios meios, já que amubulâncias são coisas raras por aqui), onde esperamos mantê-lo durante alguns dias com boa desinfecção da ferida, pensos limpos e a fazer antibióticos. O nosso principal receio é que já se tenham instalado no local algumas bactérias anaeróbias, que exigem outro tipo de antibióticos (dos quais temos muito poucas opções disponíveis) e implicam um pior prognóstico.
Durante a manhã vimos três casos de depressão em mulheres de alguma idade (para padrões sãotomenses) - 50 a 60 anos -, cujo marido havia falecido e tinham muito pouco suporte familiar ou social. A principal queixa que as trazia à consulta era insónia (não conseguiam dormir). O diagnóstico não foi difícil, o problema é o tratamento. Não temos à disposição qualquer antidepressivo, nem sequer ansiolíticos ou indutores do sono. Fizémos, mais uma vez, o possível: o Dr. Ricardo Leitão tinha trazido consigo uma caixa de hidroxizina (um medicamento que provoca sonolência, mas que, hoje em dia, raramente é utilizado unicamente com esse fim), pelo que demos 10 comprimidos a cada uma das doentes. Dentro de 10 dias volta o nosso dilema, a medicação acaba, mas a depressão vai continuar e deixamos de ter soluções para oferecer.
Ao fim da manhã veio um daqueles casos que ninguém gosta de ver. Uma mãe trazia os seus dois filhos gémeos de 3 meses porque choravam constantemente. Não apresentava qualquer outra queixa e a observação foi normal, à excepção de um atraso de crescimento estaturo-ponderal (de altura e peso) de um deles. Depois de olhar para a mãe a nossa conclusão foi quase imediata: os bebés choravam porque tinham fome. O leite da mãe não era suficiente para alimentar os dois. O pior é que não temos à nossa disposição leite artificial para lhes dar, apenas dispomos de papas que só são adequadas depois dos 6 meses (e seriam prejudiciais neste caso). O que fizémos foi dar suplementos vitamínicos e ferro à mãe e contamos trazer-lhe na próxima semana algumas caixas de para que ela própria se alimente melhor e tenha mais leite para dar aos bebés.
No entanto, outras coisas correm melhor do que esperávamos. Temos um doente epilético que tem crises convulsivas mais de uma vez por semana, já que, até agora, não tinhamos qualquer medicação para lhe oferecer. Hoje fomos entregar-lhe a primeira caixa de antiepiléticos. O problema é que a caixa é mesmo única e durará menos de dois meses. Mas o medicamento vai ser preciso durante muito mais tempo (possivelmente até para o resto da vida) e a sua interrupção abrupta pode agravar a doença, pelo que pedimos que no-lo enviassem de Portugal.
No final da tarde tivemos direito a algum tempo de descanso (bem merecido) e fomos até à praia da Jalé, que fica no sul da ilha, junto a Porto Alegre (onde tinhamos ido entregar o antiepilético). O local é lindíssimo e a água convida a um mergulho. Contudo, as correntes são perigosas, pelo que nos ficamos pelo banho junto da rebentação e umas brincadeiras dentro de água. Antes de vir embora comprei uma dúzia de cocos ao guarda dos bungalows que ficam junto da praia. Paguei 20 000 dobras, um preço bem acima do habitual em S. Tomé e que representará cerca de um décimo do salário mensal do guarda. Só que 20 000 dobras são menos de 2 euros (muito menos do que pagaria pelos mesmos cocos em Portugal), o que dá uma ideia do nível de vida destas pessoas.

O fim-de-semana é a altura em que vamos até à capital para abastecer a nossa dispensa e retemperar forças com um belo duche de água quente. No entanto, durante a estadia na capital não tenho acesso à internet. Assim, a entrada do diário de sábado apenas ficará disponível no site no domingo à noite.

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Comentários

2005-09-03 10:09:07
Anónimo

Daniel, tenho curiosidade de saber se a comunicação médico-doente é fácil ou não. A língua oficial é o português mas fala-se sobretudo crioulo. Mesmo falando português deve ser difícil garantir que as recomendações são bem compreendidas principalmente no que diz respeito à terapêutica medicamentosa...(claro que nós em Portugal temos o mesmo problema!como sabes. Bom trabalho

2005-09-07 18:09:08
MIGUEL

PELOS VISTOS OS MEDICAMENTOS EXISTENTES SAO POUCOS E OUTROS RECURSOS TAMBÉM NAO VAIS PASSAR MUITO TEMPO A ESCREVER RECEITAS QUANTO AO NIVEL DE VIDA ISSO PROMETE PÁ

2005-09-09 15:09:04
Luisa Peres

Olá Daniel, Ainda não vi o site... só cuskei um cadito. Agora só vim mesmo deixar muitos beijinhos! Luisa

2005-09-13 22:09:35
Daniel Pinto

A comunicação médico-doente por vezes esbarra com alguns obstáculos: a dificuldade em falar/entender o português e o baixo nível educacional da população. Quase sempre conseguimos resolver as dificuldades recorrendo ao enfermeiro ou ao nosso motorista como tradutores. No entanto, a língua mais falada não é o crioulo. A nível nacional, a maioria da população fala o forro, língua própria de S. Tomé e que tem as suas origens nos primeiros escravos libertados (os forros - ver Sobre S. Tomé e Príncipe > História). Mas no distrito de Caué fala-se o Angolar, um dialecto próprio (ver História). O crioulo é a terceira língua mais falada na ilha (depois do português e do forro) devido aos fluxos migratórios de contratados de Cabo Verde na primeira metade do século XX.

2007-12-02 15:12:45
margarida

gostei muito desta pagina

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